Não só Mariana sofreu estupro, mas todos nós

Para entender o deslinde do caso Mariana Ferrer é necessário explicar as regras do Direito que são atinentes à matéria. Em nosso ordenamento jurídico, vigora o Princípio da Excepcionalidade do Crime Culposo, que assevera que os crimes previstos em nossas leis só podem ser aplicados na modalidade culposa quando houver expressa previsão. Ou seja, todos os crimes são, em regra, dolosos, quando o agente quer o resultado ou o aceita; porém, a lei diz que alguns crimes, e não são todos, podem ser responsabilizados de maneira culposa, quando o agente age com negligência, imprudência ou imperícia para causar o resultado.

Entendamos melhor com exemplos. O crime de homicídio (artigo 121 do Código Penal) possui a previsão da modalidade culposa (no parágrafo 3º do mesmo artigo); portanto, homicídio pode ser imputado tanto na versão com dolo quanto na versão culposa. Prosseguindo, temos que no crime de roubo (artigo 157 do mesmo diploma legal) não existe a modalidade culposa, o que implica em dizer que não existe uma cena onde alguém roube outra pessoa “sem querer”, agindo com negligência, imprudência ou imperícia, como dito antes. O mesmo raciocínio vale para o crime de estupro de vulnerável (artigo 217-A), é surreal a hipótese de uma pessoa estuprar outra “acidentalmente”, não cabe na realidade fática de nenhum mundo. De onde surgiu esse hoax da internet? Não faço ideia.

Quanto à postura do representante do Ministério Público, esperava do mesmo a honra à investidura do cargo, que fosse o fiscal da Lei. Porém, o que vemos é inércia e omissão, especialmente diante das agressões do advogado de defesa que não poupou esforços para difamar a vítima usando as fotos de seu perfil. Como fiscal da lei o mesmo deixou, e muito, a desejar. Ele era o baluarte, o escudo de proteção de Mariana Ferrer, e trai a confiança da sociedade e da vítima com a sua postura condescendente. O mesmo pode ser dito do magistrado, que é o presidente do ato, ao permitir que tudo aquilo ocorresse naturalmente.

Pior, em trecho de sua sentença demonstra o seu desprezo por todo o trabalho técnico-científico desenvolvido através de laudos, perícias etc, ao dizer que (ipsis litteris): “Assim, diante da ausência de elementos probatórios capazes de estabelecer o juízo de certeza, mormente no tocante à ausência de discernimento para a prática do ato ou da impossibilidade de oferecer resistência, indispensáveis para sustentar uma condenação, decido a favor do acusado André de Camargo Aranha , com fundamento no princípio do in dúbio pro reo.” Ou seja, o juiz entendeu que uma vítima sem condições de dizer ‘não’ é o mesmo que ela ter dito ‘sim’. E como todos os atos do Poder Judiciário, em regra, são públicos, as cenas dantescas da audiência reverberarão enquanto o tempo for tempo.

E o que dizer do advogado do réu? Faço a ressalva que “o advogado tem imunidade profissional, não constituindo injúria ou difamação puníveis qualquer manifestação de sua parte, no exercício de sua atividade, em juízo ou fora dele, sem prejuízo das sanções disciplinares perante a OAB, pelos excessos que cometer”. Está em nossas prerrogativas como advogados. O que em linhas menores pode ser dito como sendo a imunidade do advogado quanto as ofensas que produzir durante o seu trabalho. Porém, devemos atentar para o trecho final, os excessos cometidos. Será que era realmente necessário usar das fotos da vítima para culpá-la pelo estupro que ela sofreu? As humilhações promovidas pelo advogado do réu causaram asco a todos os seres verdadeiramente humanos que assistiram a audiência, sejam mulheres ou homens, advogados ou não! E, assim, cabe a OAB de Santa Catarina abrir o procedimento que deve culminar na punição exemplar deste profissional, sob pena de abrir as portas para outros casos idênticos.

Vivemos em um País onde o óbvio precisa ser gritado a cada instante. A mulher é dona de seu corpo e dele dispõe como o seu desejo quiser, usando a roupa que quiser, no tamanho que quiser, com o decote que quiser, nas fotos como quiser ser fotografada. Nada substitui o consentimento. Qualquer ato de intimidade depende de consentimento, e o silêncio não significa aceitação. Embora advogado criminalista, sou pai de uma menina, e torço que a decisão que absolveu o réu seja reforçada para condená-lo, preferivelmente na pena máxima, e que o advogado dele seja expulso da Ordem dos Advogados do Brasil para eu não passar pelo vexame de precisar chamá-lo de colega.

Franklin Soares. Advogado, pós-graduado em Direito Processual Penal

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