Aumentar o fundão ou voltar o financiamento privado

Membro fundador da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep) e presidente da Comissão de Direito Eleitoral da Ordem dos Advogados do Brasil, seccional Bahia, o advogado Rafael de Medeiros Chaves Mattos diz concordar com a afirmação de que, “em tese”, o financiamento majoritariamente público de campanhas, permite “o exercício de mandatos com maior liberdade”.

E completa: “ao menos no que tange à influência de grupos econômicos”. Ele entende, porém, que a celeuma em relação ao volume de gastos públicos colocados à disposição dos partidos poderia ser resolvida com o retorno da possibilidade de doações de pessoas jurídicas. A questão seria só de limites. Por isso, propõe “fortes alterações” do sistema declarado inconstitucional em 2015, entre as quais a fixação de limites nominais de doação.

Agência Senado – A elevação da verba para o Fundo Eleitoral tem causado muita polêmica por ser expressiva, especialmente num momento de dificuldades financeiras para o país.

Rafael Mattos – Não há dúvidas de que a democracia tem seu custo, que é inafastável, e está diretamente relacionado à mais ampla disseminação de ideias e propostas dos partidos e candidatos. O exercício da livre escolha do eleitor, pressuposto de legitimidade do sufrágio, passa pelo maior acesso possível ao quadro de candidatos, seus perfis individuais, ideologia, propostas, entre tantos outros aspectos capazes de influenciar as definições de votos. E é lógico que levar tais informações aos eleitores atrai um evidente custo. Ainda assim, considerando o momento de crise, com a geração de despesas extraordinárias no combate à pandemia da Covid-19, e, ainda, considerando as amplas possibilidades de disseminação das informações por meio de redes sociais, me parece um momento inconveniente para uma elevação tão brusca da verba destinada ao fundo. Essa avaliação, contudo, me parece muito mais revestida de conteúdo político que jurídico.

Agência Senado – Dentro da tese de que democracia tem o seu custo, se não há dispêndio de recursos, os partidos e os candidatos não conseguem levar suas mensagens aos eleitores e as eleições não podem refletir o caldo variado de visões. Até que ponto essa afirmação pode ser considerada?

Rafael Mattos – Seguindo nessa linha de raciocínio, é de todo recomendável que o acesso à informação, pelo eleitor, seja o mais amplo possível, o que termina se materializando em despesas. Nosso sistema já aboliu diversas formas de propaganda com o intuito de reduzir as despesas de campanha, e, com isso, o próprio custo da nossa democracia. Foi o caso, por exemplo, da distribuição de brindes – cuja proibição tem também o viés de evitar a influência na liberdade de voto – vedação aos outdoors, showmícios, entre outros. Ao reduzir as possibilidades de acesso do candidato ao eleitor, terminamos por prejudicar a mais ampla liberdade de escolha. Afinal, se o eleitor não conhece todas as opções que tem à sua disposição, com o maior número possível de detalhes, a sua escolha termina restrita àquelas possibilidades que alcançaram a sua atenção, ignoradas as demais. Nesse sentido é que soa lógico que eliminar despesas de campanha ou reduzi-las drasticamente, por ter reflexo direto na ampla divulgação das candidaturas, termina por prejudicar o maior espectro possível de representatividade de todos os grupos e matizes ideológicos.

Agência Senado – Há também quem diga que as eleições são caras porque a forma de preenchimento dos cargos eletivos é inadequada. Principalmente no que toca aos pleitos nos quais os candidatos são obrigados a fazer campanhas em âmbito maior do que se tivéssemos o voto distrital. Outra modalidade mais econômica seria o voto preferencialmente na legenda.

Rafael Mattos – Não concordo com a visão de que o custo da eleição esteja relacionado à forma de escolha dos deputados federais, e mesmo dos estaduais, por força da necessidade de realização de campanhas em grandes âmbitos territoriais. De certa forma, a eleição proporcional termina, ao invés, por reduzir ou controlar esses custos, já que os votos obtidos por todos os candidatos de um determinado partido terminam por ser aproveitados pela legenda. O custo seria maior se considerássemos votos inteiramente desprezados – na conquista de vagas – como se dá numa eleição majoritária, que é o modelo que seria obtido pelo sistema distrital puro. Além disso, numa eleição para deputados, pelo sistema distrital, exatamente pelo aspecto crucial que é a obtenção do maior número de votos individualmente considerados, a disputa terminaria por ser mais acirrada, correspondendo a características muito próximas de eleições majoritárias para o executivo, e o custo dessas campanhas tenderia a crescer. A outra alternativa seria a eleição proporcional em lista fechada, que, no entanto, depende da criação de normas específicas de democracia intrapartidária, sob pena de perenização de caciques partidários no poder, em detrimento da saudável oxigenação política.

Agência Senado — Voltando ao tema da valorização da democracia, como o senhor vê a proporção ínfima dos recursos obtidos de filiados a partidos e simpatizantes no total dos recursos utilizados em campanhas? Esse é um problema que decorre da falta de tradição ou é porque o sistema atual é mais cômodo?

Rafael Mattos — Não podemos esquecer que tradicionalmente, no Brasil, o sistema de financiamento privado das campanhas sempre esteve muito concentrado em doações de pessoas jurídicas, que terminou por ser considerado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal. Eu defendo o retorno da possibilidade de doações de pessoas jurídicas, porém com fortes alterações do sistema declarado inconstitucional, com a fixação de limites nominais de doação – não apenas proporcionais ao faturamento -, além de diversas limitações à contratação das empresas doadoras com o poder público. O fato, contudo, é que o sistema de financiamento privado, hoje, está adstrito às doações de pessoas físicas e ao autofinanciamento. Não existe no Brasil, diferentemente, por exemplo, dos Estados Unidos, qualquer tradição de contribuição dos eleitores às campanhas de seus candidatos. Nesse cenário, os crowdfundings [vaquinhas], por exemplo, salvo exceções pontuais, terminam por não revelar resultados animadores na seara das campanhas eleitorais. Não acredito que seja por acomodação dos candidatos e partidos, mas por falta de tradição mesmo, além de um sentimento muito forte de descrença do eleitorado. E com essa limitação, aliado aos já comentados custos naturais das campanhas, terminamos muito dependentes do financiamento público.

Agência Senado – O financiamento via fundo eleitoral e fundo partidário não seria mais confortável do ponto de vista da relação com o eleitor? O financiamento direto de eleitores, individualmente ou em vaquinhas, não levaria a maior cobrança?

Rafael Mattos – A verdade é que ao longo dos anos nos deparamos com crescente distanciamento do conceito de representação política, com exercício de mandatos livres, e com a aproximação da representação de interesses. O financiamento público de campanhas eleitorais tem o condão, ao menos em tese, de permitir o exercício de mandatos com maior liberdade, ao menos no que tange à influência de grupos econômicos, sem dúvida.

Agência Senado – Outro aspecto do controle das verbas de campanha: as regras eleitorais, segundo um levantamento não exaustivo, compõem-se atualmente de artigos da Constituição Federal, 10 leis, 55 resoluções do TSE, inúmeras respostas a consultas ao TSE e aos TREs, uma resolução do TCU e tabelas diversas emitidas pelo TSE. Como é que a população pode ter um mínimo de interferência no estabelecimento de um sistema que lhe pareça mais racional e justo, se até para entender as regras que já estão é aí é praticamente impossível? O Brasil não estaria carecendo de uma consolidação das leis eleitorais?

Rafael Mattos – Penso que um novo Código Eleitoral poderia fazer muito bem o papel de consolidação de todas essas normas citadas — especialmente as normas legais —, com a modernização de diversos conceitos e regras, além de estabelecer regras processuais próprias, e adequar a legislação à jurisprudência formada em nossos Tribunais Superiores em relação a diversos temas. O nosso Código Eleitoral, hoje em vigência, é de 1965, gestado, portanto, no período do regime militar. E sem dúvida é extremamente incompleto, especialmente considerando o advento de diversas leis, como a lei das eleições, dos partidos políticos e das inelegibilidades. Sou, portanto, amplamente favorável a um novo Código Eleitoral.

Fonte: Agência Senado

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